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sexta-feira, 12 de março de 2021

Da minha singularidade para a sua

 



Entre o que eu penso, o que quero dizer, o que eu digo e o que você ouve, o que você quer ouvir e o que você acha que entendeu, há um abismo

Alejandro Jodorowsky

 

De tudo o que sou (ou intenciono, imagino, pretendo ser) para o que você é (ou que,  igualmente, intenciona, imagina, pretende ser), existe como que uma teia que nos envolve, nos enreda e nos impulsiona nos infinitos eventos de relação, em que interagimos num vai e vem constante de possibilidades e caos. Em muitos desses eventos, estamos sensorialmente próximos; em muitos, abstratamente distantes. Eventualmente, nos posicionamos de forma sutil, evasiva, fluida, mas, ainda assim, não perdemos contato. Este evento, entretanto, pode se dar por múltiplas e sofisticadas formas de interação, nem sempre reconhecidas ou estabelecidas em nossa grade de pensamentos e percepções.

De onde estou, posso fechar os olhos e, de alguma forma, sentir o outro que me acompanha na jornada da vida, nos caminhos entremeados de incertezas, estreitezas e amplitudes, nos caminhos singulares em cada instante e em cada esquina, nos caminhos que se confundem, se entrelaçam e se afastam, como cadeias de presenças e ausências expressas no caos da vida. Não se enganem, porém: o caos é repleto de tudo o que se supõe existir…; o caos é a própria vida e além dela. Nele coexistem as singularidades que transitam pelo éter da existência e habitam mundos, numa babel resiliente a tudo que a confronta.

Seguimos inconformados com a inércia, numa busca pelo que se apresenta, pelo que nos consome. Não hesitamos em esticar as mãos para alcançar aquilo que nem sequer sabemos ao certo do que se trata. Mas seguimos. E, às vezes, as nossas singularidades, numa dessas interseções que se cruzam, esbarram em questões que nos escapam ou em outras singularidades ainda mais singulares, daquelas que nos obrigam a parar e rever nosso mundo,  o que acreditamos e para onde vamos. Nestes instantes mágicos, a cadeia da vida suspende o tempo, que para, num contínuo êxtase, para contemplar o vazio repleto de seus próprios significados. Meu olhar singular se volta na busca do entendimento por esse outro para captar seus dizeres e anseios, seus temas e discursos. Enfim, não para exatamente entender o que se passa no outro ser que contemplo, mas para entender o que se passa em mim, no meu próprio universo.

Na minha singularidade, me confronto e me conformo com a sua, na busca pelo que nos proporciona aquele quê de luz, de insight, de magia…, dançando nas nossas espacialidades invertidas, buscando encontrar o mundo um do outro, sem nos ater a padrões ou armadilhas, livres para experimentarmos o doce sabor da insensatez e da loucura ou seja lá do que for. Na realidade (ou fora dela), não há sentido em cantar canções dissonantes que nos machucam, não há sentido em responder ao que não nos diz respeito. Aliás, respeito parece ser apenas o que importa nisso tudo. Respeito a mim, ao outro, ao que sei e ao que não sei; respeito pelo que quero, desejo, assumo, assim como você; respeito à sua coerência e à minha incoerência e vice versa; respeito ao que não me diz respeito, ao que não quero saber e ao que realmente não somos obrigados a tal. O mundo circula e apenas acompanhamos, com olhares e inquietudes sonhadoras, certos de que não faz muita diferença para as continuidades existenciais o que sentimos e pensamos.

Só o que importa é o agora, o olhar e o toque que compartilhamos, da minha singularidade para a sua. Não importa o tempo que flui, apenas o que trocamos em direção às nossas emoções e a nossos saberes de existência. Se nos perdermos, saberemos o caminho de volta. E, se o caos se avolumar à nossa volta, saberemos que, em algum momento, o mundo parou para nos encontrarmos. E isso basta, talvez pela eternidade.

Luana Tavares (março/21)

 

 


sexta-feira, 19 de junho de 2015

Majora*



Só somos felizes, verdadeiramente felizes, quando é para sempre, mas só as crianças habitam esse tempo no qual todas as coisas duram para sempre

(José Eduardo Agualusa, in “O vendedor de passados”)


Certos universos nos surpreendem, mais ou menos como a máxima de achar que de onde menos se espera, surgem preciosidades, ou, pelo menos, algo se mexe no espírito meio adormecido. Foi assim com a lua de Majora, prestes a cair, caso o tempo não se incumba de encontrar soluções favoráveis aos destinos incertos de cada um de seus habitantes (com seus dramas e seus sonhos inacabados). O que parecia ser uma simples brincadeira revelou-se uma reflexão curiosa sobre percepção e valores.

No interior deste belo e enigmático ambiente, crianças brincam a desafiar dilemas e nos convidam a tirar nossas máscaras, expor nossas questões e nos revelarmos.

As crianças indagam:

Seus amigos, que tipo de pessoas eles são? E essas pessoas te veem como um amigo?

Amigos... são como criações divinas,  diante das quais só nos resta nos curvarmos para agradecer. São eles que tanto nos confortam quanto nos incitam a prosseguir. São como alvoradas após a densa obscuridade da noite, onde muitas vezes nos desesperamos. Também são onipresentes e alguns parecem mesmo dotados de um sexto sentido, pois se acercam nos momentos mais peculiares.

A questão é se sabemos quem eles realmente são. Adorar alguém, estar disponível, mesmo com tanto afeto, não necessariamente implica saber com quem você está falando. Na verdade, não conhecemos o outro, pois este se fragmenta em inúmeros outros, muitas vezes desconhecidos até dele mesmo.

Muito menos sabemos como somos vistos, pois as infinitas facetas existenciais não possibilitam esta abertura. No fundo, somos desconhecidos deles e de nós, numa ininterrupta roda viva de conhecimento em tantos sentidos.

A amizade não é exatamente uma via de mão dupla, então sermos amigos de alguém não nos credencia a sermos vistos como tal. Mas acredito que sempre haja uma vontade, uma intenção, de querer vir a ser especial a quem queremos bem.

Você... o que te faz feliz? O que te faz feliz deixa os outros felizes também?

Ser feliz tornou-se uma norma, uma ilusão a ser perseguida. Para aqueles que nos acessam, podemos parecer felizes e muitas vezes até o somos realmente, provavelmente no sopro do momento eternizado pelas lentes frias. Mas e o que vai ao âmago? Desde quando ser feliz é o que importa? Devemos sê-lo simplesmente porque alguém ou alguma lei desavisada, assim o decretou? O que te faz feliz, afinal?

O que é ser feliz para você? Importa definir ou vivenciar? Algumas pessoas são felizes apenas naquilo que imaginam ou nas suas possibilidades. E isso não é bom nem mau. Para alguns, a realidade pode não ter espaço suficiente para merecer o status de participação ativa. Então, talvez a felicidade seja apenas um ínfimo momento mágico, concebido pela fugaz química jorrada em nosso ser.

Assim, o que te faz feliz não está exatamente vinculado à felicidade do outro, pois o outro tem uma química diferente da sua. Seus instantes serão, sempre, somente seus. Se for desta forma, a felicidade é singular e pode ser, quem sabe, apenas compartilhada.

A coisa certa... o que é? Pergunto: se você fizer a coisa certa, isso realmente deixa todos felizes?

Esta é uma questão tensa porque implica em saber do que se trata fazer a coisa certa. Implica, portanto, em desenvolver um aguçado senso de percepção para entender o mundo que nos cerca. Isso é quase uma aberração. Muitas vezes, o que é para mim – vital, digno, essencial – pode significar a dor alheia. Então, somos obrigados a criar novas dimensões para compor estatutos de existências, para que continue a ser possível continuar coexistindo. Arrisco-me a dizer que não... que se cada um fizer a coisa certa para si, quase ninguém ficará realmente feliz.

Seu verdadeiro rosto... que tipo de rosto é? Me pergunto...  o rosto debaixo da máscara é seu rosto verdadeiro

Se fosse possível perscrutar esse tal rosto verdadeiro, aí quem sabe pudéssemos restringir a amplitude das faces debaixo da máscara, e nos perguntar qual seria ele e onde estaria. Há tantos e tantos rostos. Nossa singularidade, afinal, não é tão singular assim. Ela comporta inúmeros eus que se formam e se deformam ao longo do dia, do tempo, da vida. Mais provável que não exista um rosto por baixo da máscara. Talvez as máscaras sejam nossos verdadeiros rostos. Não para nos ocultar, mas sim para nos revelar através do turbilhão de sentimentos e vivências que nos compõem.

Tudo isso não significa que não sejamos íntegros ou que não exista uma essência escondida em algum chacra oculto. Significa tão somente que somos complexos demais, densos demais, para permitir reduções simplistas. Assim, as máscaras podem cair ou permanecer intactas... o que importa é que sejam plenas e significativas para fazer valer seus momentos.


*Texto inspirado em um trecho do game "A Máscara de Majora" que, por sua vez, teve seu nome inspirado na lenda de uma tribo indígena brasileira, Marajora, que era conhecida por fabricar máscaras.

https://www.youtube.com/watch?v=-Gi7dhcV-AU

**Axiologias

Luana Tavares (junho/15)


quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

Era uma vez...*



Às vezes, eu acredito em seis coisas impossíveis antes do café da manhã

(Alice no País das Maravilhas, Tim Burton, 2010)


As singularidades adentram os espaços terapêuticos das mais improváveis formas. Alguns chegam indecisos sobre o porquê de estarem ali, afinal nem sempre existe obviedade; outros talvez não saibam que seja uma porta para descobertas tão incômodas quanto difíceis. Existe a probabilidade de que um turbilhão os perpasse, podendo arremessá-los até a mais insana possibilidade de ser. Na verdade, percorrer caminhos de encontros pode ser tão inusitado quanto permanecer inerte no estado catatônico em que a normalidade desavisada costuma nos mergulhar.

Cada um tem sua estrada, suas histórias na bagagem, que muitas vezes arrastam melancólicos ou sem vontade, desgostosos do que mais desejam. Na verdade, as histórias se misturam em potes, cujo fundo nem sempre é visível. Falas entrecortadas de peculiaridades trazem à tona que um dia fui assim... há muito tempo não sei mais quem sou... não sei se percebi o tempo que passou  nem mesmo sei se me terei de volta... em tese, é a mesma pessoa; mas na versão real, pode ser qualquer outro alguém. É como um mistério e um desafio, uma nota dissonante de uma canção que não se acaba. Não há réquiem para os corações que pulsam.

A dádiva de penetrar mundos e se colocar disponível a compreender historicidades, preencher lacunas e reunir pontos nem sempre visíveis requer uma disponibilidade que se pretende única e que se traduz através da escuta e da presença, onde o jogo de olhares e silêncios torna-se cúmplice de atitudes que se preparam para uma de suas mais belas facetas: abrir-se ao seu papel existencial do ser cuidador.

Em alguns momentos, essa escuta apenas se faz presente, e observa, antevendo possíveis suspiros ou brilhos molhados que pendem de olhares suplicantes por se fazer ouvir. Parece tarefa árdua, mas apenas para quem não se importa. Na verdade, é como perceber universos inteiros em seus maravilhosos contos de fadas reais, onde mocinhos e vilões dançam abraçados no decorrer das páginas. Hora de ler nas entrelinhas e nas literalidades, plantando atalhos e promovendo os dados divisórios e os enraizamentos que permitirão a compreensão do quebra-cabeça existencial.  O que torna a escuta capaz é saber que participamos e coexistimos da mesma matéria daqueles que ouvimos e somos tão imortais quanto os sonhos e as vicissitudes que alimentam a todos. Então, é preciso buscar forças e bases e convocar a alteridade latente que nos permite navegar em mares tanto rasos quanto profundos.

Nos antigos e etéreos reinos distantes dos contos de fadas era fácil acreditar que os destinos se desdobravam, suspensos por mágicos eventos, revelando realidades que se confundiam e se tornavam o que quer que se desejasse. Lá, tudo (ou nada) fazia sentido e acreditar em coisas impossíveis era tão banal quanto admirar os mistérios da vida ou se colocar na condição e na ordem de um universo imaginário, sem nexo, sem limites... Em nossos tempos existenciais nem sempre os instantes se sucedem como a lógica da vida parece querer demandar. Cada história singular se confunde com si mesma, agarrando-se à fugacidade do instante presente, numa tentativa desesperada de se fazer existir. Então, só fará sentido o que estiver impresso na alma e ressignificar os caminhos percorridos.

Assim, desde que se acredite, não há limites para a os desdobramentos de qualquer relato. É papel de quem ouve estabelecer, em tácito e firmado acordo, filtros para que as essências (ou o que de fato importa) se revelem, o mais claro e limpidamente que se possa observar nas bordas cristalinas da autenticidade permitida. Porque as histórias nem sempre têm começo, meio e fim como parâmetro. Ao contrário, são capazes de ir, vir e se reproduzir a cada segundo, como centelhas inesgotáveis de matéria-prima que compõem os versos da estrada que as conduz. Histórias saltam, retrocedem, vislumbram, se alternam, coexistem e não se esgotam... como flashes existenciais que se propagam na infinitude de tudo o que poderiam ser.

Entretanto, há uma chance de não sermos pegos de surpresa pelo jaguadarte que generosamente deixamos que nos fira. Se abrirmos as portas da imaginação e simplesmente nos soltarmos, lançando nossa alma no turbilhão, talvez nos seja permitido acreditar em algo impossível: que somos capazes de fazer valer o que realmente desejamos, seja lá o que for. De preferência, antes do café da manhã.

*Historicidade

Luana Tavares (fevereiro/15)


terça-feira, 2 de setembro de 2014

Azul e amarelo



‘Amar é um elo entre o azul e o amarelo'

(Paulo Leminski)

Dizem que o arco-íris condensa todas as cores, assim como sonhos, esperanças e olhares perdidos.
Ele se esquece no horizonte e cruza os destinos de quem ousa ver além, ao alcance dos que fantasiam.
Para tanto, basta a pressa da felicidade e a ingestão dos encantamentos.
Porque é preciso vida para cruzar a fonte e é preciso amor para encontrar o pote das preciosidades inebriantes.
Também é preciso acordar cedo (ou tarde), apenas para ter certeza de que mais um dia acontece para que se intencione ser feliz.
Depois, há o tempo de caminhar juntos, comprometidos com o que nem sempre importa, mas que costuma ser bom. Se no meio do caminho tropeçar, paciência. Sorria e estenda a mão à alma caída para que ela possa te puxar.
Participar de dores e dissabores também faz parte, como tempero para o prato principal, mesmo que seja só uma saladinha.
Assim como o vaivém das singularidades traçam uma dança inusitada que explode em facetas caleidoscópicas, há todos os filhos nascidos do corpo ou do coração – não importa de quem – que costumam ser a melhor parte de uma construção que vai além.
Porque adentrar arco-íris nem sempre é fácil; estar junto também não.
Mas vale a pena quando as nuances se combinam, se revelam ou se multiplicam. Ou quando alguns matizes do azul e do amarelo se misturam para adornar vivências e proclamar alegrias que ora ordenam, ora bagunçam.
Planejam ou improvisam seus cenários revestidos de cotidianos e divergências em times e tonalidades.
Mas também de afinidades e alegrias, percebidas nos olhares investidos de cores ou em preto e branco, para trilhar caminhos plenos, intensos e sem limites... não só em azul e amarelo.
Pois se amar é um elo, que este esteja perdido entre o ontem e o amanhã... que se perpetue no presente e se reconheça eterno, como os sonhos, as esperanças e os olhares que se encontram num beijo entre o sol e o céu... entre o amarelo e o azul.


Luana Tavares (setembro/14)


Para Sérgio e Kellen

quarta-feira, 20 de agosto de 2014

A estranha efemeridade do ser

 
Journey - Matt Nava
Não há fatos eternos como não há verdades absolutas”.

(Friedrich Nietzsche)



Quanto mais as eras se acumulam, mais a humanidade se esforça para permanecer fantasticamente bizarra. Não importa em que raio do planeta sua representação esteja, ela caminha insondável em praticamente todos os seus aspectos. Ao mesmo tempo em que fascina, surpreende, envolve... também insiste em escapar por entre os véus de uma estranheza que parece não ter fim. E não é interessante que se explique ou se justifique no que quer que seja. O (des)encanto de sua natureza exige que continue obscuro. Talvez em troca da garantia de que permanecerá incompreensível – tanto pela insanidade que cultiva perenemente quanto pela insistência em perseguir a trilha oposta à simplicidade que a faria melhor – aos olhos dos mortais que abriga. 

  
Cabe questionar se a entidade criadora presente no caldo primordial previu todas as diversidades, incongruências, incertezas e improbabilidades presentes na dimensão de sua criatura. Talvez ela também não tenha atentado nem mesmo para o alcance das potencialidades preservadas nas essências que vigoravam nos primeiros sabores da sopa que ainda hoje vertemos. Porque permanecemos aprendizes de como funcionam certos atributos desta desestruturada condição de ser. E, ao que parece, ainda estamos muito longe do ápice. Isso se houver um, é claro. Mais provável é que, tal qual o zero absoluto, ultrapassemos o ponto crítico da sabedoria e mergulhemos confiantes na cratera eterna da insanidade total. 


Quando nos deparamos com o piscar entre os instantes da vida, nos damos conta do quanto ela é singular e efêmera. Percebemos que, afinal, de tudo o que somos e sabemos, talvez nada ou muito pouco de fato importe. É a envergadura de atentar para o presente que convence a vida. Não em detrimento da historicidade ou da instância do porvir, mas para fazer valer o aqui e o agora. Ainda que a percepção da efemeridade do tempo mecânico assuste – tanto pela sua fugacidade quanto pela estranheza – ela igualmente consola. E apesar de toda a racionalidade (ou até mesmo por causa dela), ainda pisamos indecisos nos nossos destinos, na tentativa de manipular até mesmo o que não deve ser violado. Infelizmente as pretensas dignidades podem ser tão insanas e peculiares quanto a própria existência.

 
Acordar para o instante cristalizado determina o alcance das predisposições futuras. É preciso significado para perpetuar o que somos. Mas também é vital que a magia não se perca entre as brumas e as voltas por onde brincamos de existir.  Existir demanda criatividade para vazar as raias da loucura que não se esgotam e que se alimentam incessantemente das profundezas de uma primitividade que, no fim das contas, sempre faz questão de se reinventar.


Luana Tavares (agosto/14)





sexta-feira, 25 de julho de 2014

Comentário ao livro “Poéticas da Singularidade”, de Hélio Strassburger (Editora E-papers/RJ)


(BROOKE GOLIGHTLY)

“Nem sabia se era começo ou fim. Poderia ser tudo ou nada.”
Helio Strassburger


A impressão durante quase toda a leitura é de estar diante de uma poesia. Não há  absolutamente nenhuma indução neste sentido pelo título; é que ela está presente em sua fala, tanto quanto na singularidade. O ritmo é o da poesia que provoca, que não quer esclarecer, mas dar uma chance aos mais epistemológicos de se deliciar. Hélio força o leitor a fazer certo ajuste para entrar no mundo da especulação e acredito que este seja pelo menos uma de suas características. A ausência de pronomes definidos e a sensação de que estamos a todo o momento sendo levados a um caminho de sugestões – como um convite a um passeio pela complexidade das palavras – expressam bem esse sentimento.

Não há obviedade na leitura, mas e daí... também não há nenhuma no ser humano (pré-juízos meus!). Ela acontece de uma maneira curiosa, que impele a uma reflexão quase artística. Muitas vezes é possível (e inevitável) se perder na beleza da escolha de termos, que para muitos podem até ser equívocos. Quantas vezes são necessárias releituras para encontrar o sentido claro/oculto das entrelinhas. A estrutura de pensamento deve estar aberta e receptiva à percepção. Se estiver, é uma festa na apreensão e interiorização de uma possível proposta. O texto é uma dança de possibilidades e é justamente aí que reside sua riqueza. 

Nosso professor e filósofo clínico provavelmente não tem a intenção de ser elucidativo. Deixa a quem se aventura a emoção desse passeio por entre suas impressões acerca da singularidade, que por si só, convenhamos, já seria uma grande viagem. Não é fácil chegar a um consenso sobre o texto, mas existe algum que se preze a consensos? Se assim fosse não exerceriam encantos sobre os que os leem, pois estariam condenados à superficialidade dos que nada, ou muito pouco, têm a dizer, dando voltas e mais voltas sem chegar a qualquer paragem. Não que isso importe tanto, pois há vias de beleza em qualquer lugar, dependendo isso somente do momento em que se encontra a estrutura de pensamento. Mas qualquer uma é plástica o bastante para se permitir, teoricamente, qualquer movimento.

Às vezes, porém, o ritmo causa estranheza e incomoda pela extensão e pelo contexto, algo caótico. Sinceramente, ao leigo não é recomendável que esteja desbravando, iniciando, seus estudos em Filosofia Clínica, ainda que esta esteja plenamente situada em cada frase, rica ou não em seus vice conceitos, estes sempre belos submodos presentes. Assim, a percepção singular prossegue, calma e pausadamente, amadurecendo a loucura expressa na singela intenção pretensiosa da dúvida inevitável.



O texto incomoda e instiga, mas emociona. Deve ser saboreado como um desafio, como a vida. E justamente por isso que faz com que muito, de tudo, valha a pena. Um pressuposto justo a quem se aventura, mas igualmente provoca encanto em suas associações ou impressões subjetivas, pois incita o levantar dos olhos para alcançar uma visão diferenciada do próximo. O próximo também é complexo, com sua singularidade nem sempre simples e terna, mas sempre disposta a reverberar e contagiar. Como as palavras, em suas ricas disposições, podem iniciar as consequências do voo da borboleta.

Em Filosofia Clínica, a singularidade poética de cada ser consciente é justamente o que fascina. As muitas possibilidades que se abrem em torno de cada ser e em cada aventura passível de ser vivenciada é o que torna bela a caminhada. Não importa para onde o olhar se remeta, o que conta é a consciência envolvida, a respiração conjunta que impulsiona, mesmo que não se saiba exatamente para onde, ou para quê.

Hélio Strassburger é rígido quando cuida da formação do filósofo clínico e sugere, pretensiosamente, direcionar o exercício peculiar de cada um. Mas o faz de forma carinhosa e muito bem estruturada, resultado de suas vivências clínicas e dos quilômetros percorridos de uma didática envolvente e livre. Há surpresas em cada encontro.

Por Luana Tavares (julho/2014)
Filósofa Clínica
Niterói/RJ




sábado, 10 de maio de 2014

O fio de Ariadne




Não foi o homem quem teceu a trama da vida: ele é meramente um fio seu. Tudo o que ele fizer à trama, a si próprio fará”.
(Cacique Seattle, da tribo Suquamish)



Certos verbos não são encontrados em esquinas banais. Permanecem escondidos, se esgueirando por entre poças e becos, de onde observam os receptáculos em que intencionam se instalar e se (re)velar. São como sombras que ocultam do mundo o que ele já conhece, mas não ousa expressar. Porque a vida nem sempre abre suas portas para que as sutis e plenas entregas existenciais prevaleçam.

Às vezes, ao contrário, a vida aposta em labirintos, na busca de ensaios e brechas por onde se espremem sonhos inconfessáveis. Sonhos de um desfazer, de isolamento, de uma perda que se esvai...como que exalando aquela sensação incômoda de que há algo fora do lugar, tal como uma nota dissonante ou uma cor fugidia da palheta inundada de nuances imprevisíveis.

São tênues os fios que mantêm as estruturas estáveis e eles podem se romper a qualquer instante, abrindo as comportas da superficial sanidade que nos define. Imersos nas densas e alucinadas brainstorms que castigam, contínua e severamente, as frágeis conexões, eles se constroem e nos induzem às vastas e profundas loucuras a que nos sujeitamos na execução dos dias. Com sorte, a loucura se apropria do ser e derrama sobre ele as bênçãos da inconsequência libertadora. Assim, se nos oferece a oportunidade de penetrarmos cada vez mais em direção a destinos imaginários, repletos de ilusões e fantasias.

Das ilusões e fantasias, Ariadne puxa o fio singular que moldará o próximo enigma a ser solucionado nas profundezas das teias que capturam e formam as essências estruturais. As teias de nosso próprio destino, que se pulveriza e se estende desde toda a eternidade. Ele nos guiará sem prevenções e sem reservas, pouco se importando de onde veio ou para onde vai. Não são os começos ou fins que prevalecem, mas as conexões que deságuam pelas camadas sucessivas de vida e morte, na romaria perene de nossos desígnios.

Também não é possível saber quando ou quantos fios irão se desprender da ignóbil e corpulenta extensão que os mantêm presos. A vida vive apenas por um e as veias se fartam de infinitos. São eles, entretanto, que nos permitem as escolhas e, através delas, os inevitáveis desdobramentos que irão gerar infinitas possibilidades sem que haja, necessariamente, uma lógica. Esta se constrói por intermédio do simples desenrolar do novelo. De cada ato, uma consequência; de cada vislumbre, uma perspectiva que, como o bater das asas da borboleta, pode alterar ou antever os caminhos a percorrer. Os labirintos existenciais se entrelaçam na desenfreada tentativa de formar uma cadeia de acontecimentos quase improváveis e impossíveis, tornando o percurso mais tenso e delicado a cada passo.


Porquês não são sempre determinados ou determinantes e, assim, pouco importa por qual direção da encruzilhada seguir. Vale mesmo o percurso, o risco do precipício e a altura aparentemente instransponível da montanha. Pois, na realidade, não temos como saber sobre meios ou fins antes do início da trilha e qualquer uma dará em algum lugar e em algum tempo... qualquer tempo ou no tempo de cada um, especialmente daqueles que não se subtraem a prazeres e dores ou a dor dos prazeres ou aos prazeres da dor.



Luana Tavares (maio/14)